Nasce um novo sistema planetário!
Enquanto discutimos aqui os Fla-Flus da vida cotidiana, neste exato momento, em torno de uma jovem estrela similar ao Sol, nasce um novo sistema planetário na Via Láctea. E pela primeira vez temos os equipamentos certos para ver tudo isso acontecer.
Eis aí uma imagem que emociona o Mensageiro Sideral. E decerto há de tocar todos aqueles que se sensibilizam com a grandeza dos dramas cósmicos, em que nascimento e morte não envolvem apenas indivíduos, mas mundos, biosferas e civilizações.
Como descrever o que está acontecendo em HL Tauri, uma estrela a meros 450 anos-luz de distância, localizada na constelação de Touro? Bem, os astrônomos, que sempre escolhem cuidadosamente suas palavras, veem ali, pela primeira vez com esse nível de clareza, algo singelo: uma série de vãos bem delineados no disco de gás e poeira que envolve a estrela jovem. Delineados, com toda probabilidade, por planetas recém-nascidos que estão varrendo a região de suas órbitas, acumulando matéria até atingirem seu tamanho final.
Ao longos das últimas três décadas, a ciência já produziu muitas imagens desses chamados discos de acreção. Mas nunca com tamanha qualidade. O sucesso é resultado do poderoso conjunto de radiotelescópios Alma. Instalado no Chile, ele é fruto de uma parceria entre americanos, canadenses, europeus, japoneses e taiwaneses, e sua especialidade é “enxergar” em meio aos mais empoeirados ambientes do espaço, como as nebulosas que formam as estrelas e os discos protoplanetários. Captando emissões em rádio e infravermelho, o Alma vê o que nenhum telescópio óptico consegue detectar.
No caso em questão, o ângulo de visada também ajuda. Estamos vendo o disco quase de cima, o que permite notar muito claramente os vãos circulares em torno da estrela. Tudo para nos proporcionar um bom lugar, nas primeiras fileiras, para um grande espetáculo cósmico.
Ao capturar uma imagem como esta, os astrônomos mais uma vez demonstram o inegável poder preditivo da ciência. Pois o que estamos vendo é exatamente o que se esperava ver, segundo as teorias de formação planetária. Os cientistas já imaginavam que esses vãos deveriam existir, muito antes de os terem observado. Deve ser até constrangedor alguém vir dizer que “isso são apenas teorias”, depois de confrontar uma demonstração tão cabal. Trata-se, acima de tudo, de um tributo ao intelecto humano, capaz de formular mentalmente fenômenos que em muito transcendem nossas escalas usuais de tempo e espaço.
Esse é um dos níveis em que a imagem me emociona. Afinal, duas décadas atrás, não havíamos sequer descoberto um único planeta fora do Sistema Solar. E agora, cá estamos nós, decifrando em detalhes como eles se formam.
É o momento em que a observação alcança a teoria e, em seguida, a ultrapassa, criando novos desafios ao entendimento. Os cientistas ainda estão por analisar todos os dados que vêm com essa imagem e publicar suas conclusões, mas algo já surpreendeu de cara: os vãos são bem delineados, indicando um sistema já muito maduro para a idade da estrela, estimada em apenas 1 milhão de anos. É muito para você? Para o cosmos, é um piscar de olhos. O Sol, para efeito de comparação, é 4.600 vezes mais velho.
Um sistema mais maduro em pouco tempo de vida significa que planetas se formam mais depressa do que em geral se imaginava. O que por sua vez pode sugerir que um mecanismo até então tido como menos usual no nascimento de planetas possa ser importante para explicar o que se vê.
ACREÇÃO DE NÚCLEO VERSUS INSTABILIDADE GRAVITACIONAL
A receita básica para a formação de planetas é que primeiro os grãos de poeira do disco se juntam em pedregulhos maiores, chamados de planetesimais, e esses por sua vez se juntam entre si até produzir protoplanetas rochosos. Nas regiões mais externas do sistema, há mais material sólido e mais gás, e esses núcleos crescem depressa, depois atraindo para si grandes invólucros de gás. Tornam-se planetas gigantes gasosos, como Júpiter e Saturno. Por outro lado, nas partes mais internas, os núcleos rochosos ficam menores, demoram mais para se formar, e quase não resta gás para eles atraírem. Com isso, eles dão origem aos planetas terrestres, como — você adivinhou — a Terra.
Ocorre que, em regiões mais distantes da estrela, esse processo de acreção seria lento demais. Para formar um planeta gigante gasoso como Júpiter a uma distância dez vezes maior do que a que ele guarda hoje do Sol, seria preciso 1 bilhão de anos. Isso não representa um problema para o nosso Sistema Solar, onde um Júpiter poderia se formar em seu lugar atual em apenas 1 milhão de anos. Mas em HL Tauri, o buraco é mais embaixo. Ou melhor, é mais afastado.
Esse disco que estamos vendo é quase três vezes maior que a órbita de Netuno, o mais distante do nossos planetas. O vão mais interno tem mais ou menos o tamanho da órbita do nosso Júpiter. OK. Mas há outros vãos bem grandes em regiões muito mais afastadas. E ali não houve 1 bilhão de anos para um planeta se formar. Quando muito, houve um milésimo disso.
É preciso um outro mecanismo de formação, que os astrônomos chamam de instabilidade gravitacional. Uma parte do disco de gás e poeira colapsa pela ação da gravidade local e produz, em questão de milhares de anos — isso é muito rápido em astronomia! — um planeta gigante gasoso.
Em 2009, David Nero e J.E. Bjorkman, astrônomos da Universidade de Toledo, nos Estados Unidos, sugeriram que poderia mesmo haver planetas se formando por instabilidade gravitacional em HL Tauri. Os novos resultados do Alma, ouso dizer, também parecem apontar nessa direção, pelo menos para as regiões mais externas do sistema.
E aposto que ainda veremos novas nuances no nosso entendimento da formação dos planetas. Pois é assim que a ciência avança. Primeiro ela produz noções grosseiras de certos processos. Com a observação, confirmamos as hipóteses gerais e encontramos detalhes onde a teoria furou. Voltamos à prancheta e aperfeiçoamos o lado teórico. Confrontamos novamente com as observações, e as coisas, pouco a pouco, vão entrando em foco. O código dos planetas está muito perto de ser decifrado. Mas não é este o meu principal encantamento com a imagem acima.
UMA SAGA CÓSMICA
O Universo que vemos é um recorte. O nosso recorte. A espécie humana existe há 200 mil anos. É uma ninharia. Os processos cósmicos são tão mais grandiosos que, do nosso ponto de vista, observá-los é como enxergar momentos congelados no tempo. Vamos continuar a monitorar HL Tauri, mas provavelmente nada vai mudar por lá nos próximos anos, a não ser nossa capacidade de observar a estrela mais e melhor. Portanto, se quisermos entender as várias etapas de formação planetária, teremos de observar outras estrelas, cada uma num momento diferente. Cada uma delas, da nossa perspectiva, um recorte de um processo dinâmico medido em milhões de anos.
Vivemos num Universo que já tem respeitáveis 13,8 bilhões de anos. Será que, 4,6 bilhões de anos atrás, quando o Sistema Solar estava se formando, nós ajudamos outra civilização a compreender os mistérios dos planetas, enquanto ela olhava para nossa estrela infante e enxergava o vão que Júpiter escavou no disco de acreção?
E o que será de HL Tauri em mais 4 bilhões de anos, quando provavelmente nada restará de humano no cosmos? Haverá lá outra espécie inteligente capaz de observar o Universo ao seu redor e procurar no céu estrelas jovens para então fazer sua própria decifração da ciência dos planetas?
Note que estamos separados dessas hipotéticas civilizações por bilhões de anos. Mas, se há algo que é capaz de nos unir, é justamente a narrativa produzida pela ciência. Quem viveu no passado cósmico, quem está por aqui hoje e quem ainda reside no porvir — todos chegarão a essa mesma história de como nascem e morrem os planetas. Nunca nos encontraremos, mas todos partilhamos a mesma saga cósmica. Não é de arrepiar?
NA TV: No Jornal das 10 deste sábado (8), no canal GloboNews, o Mensageiro Sideral falará da audaciosa tentativa dos europeus de pousar uma sonda num cometa, na semana que vem. Mais uma tentativa, desta vez em nosso próprio Sistema Solar, de aprofundar o entendimento da origem dos planetas e da própria vida. Não perca, a partir das 22h!
Salvador Nogueira, bom dia, adoro suas materias. Sou de Salvador-Ba e assim como você estou bastante ansioso para o grande acontecimento de amanhã…. Estou contando as horas para o começo do grande passo que a humanidade estará dando. Abraços…..
Salvador, o que eu vou perguntar é off topic, sai que você é um OMI ocupado, e minhas perguntas leigas devem ser muito tediosas Mas não tô me aguentando com o que andei lendo sobre a tal dobra espacial….
1-Você é cético com relação à aplicação da dobra espacial pra viagens espaciais
2-Assim como você diz que em 10-15 anos teremos evidências de formas de vida fora da Terra, chutaria uma previsão pra essa tecnologia?
3-Também tô ansioso pra que vc fale sobre o filme Interstellar, aliás que belos buracos negros, não? 🙂
Fabio, sou cético, mas não perdi completamente as esperanças. Contudo, diferentemente das evidências de vida, que já estão no horizonte, a dobra espacial depende de desenvolvimentos que exigirão breakthroughs ainda não atingidos. Por isso é difícil chutar. Eu diria que não é coisa para este século. Mas nunca se sabe.
Sobre Intestellar, falarei bastante proximamente. 😉
Salvador, em 4 bilhões de anos teremos colonizado toda nossa galaxia e estaremos pensando em como passar para outras… 😉
Salvador, parabéns pelo seu blog. Muito bom o material.
Eu gostaria de fazer uma pergunta um pouco fora do tema desta matéria, mas nem tanto.
Ainda não tive a oportunidade de ler seu livro sobre vida extraterrestre então pode ser que minha pergunta já esteja respondida lá, mas alguém alguma vez já parou para calcular a energia necessária para uma civilização se desenvolver a ponto de colonizar outros planetas? Não estou falando da energia necessária para sair daqui e chegar lá, por exemplo. Mas da energia necessária, por exemplo, para o ser humano sair das cavernas e chegar ao ponto de ter tecnologia para colonizar (ou ao menos visitar) um planeta na nossa estrela mais próxima.
Para exemplificar minha pergunta, estamos consumindo muitos recursos do nosso planeta e male male chegamos na lua. Estamos acabando com as florestas, com a água (falta água na terra da garoa, que coisa né?), e tem o aquecimento global e por ai a fora. É claro que uma civilização que viaje pelo espaço terá a capacidade de usar fontes de energia muito mais eficientes do que a nós humanos usamos atualmente. Mas o ponto é que enquanto não se chega nesta ponto de tecnologia, a sociedade humana (por exemplo) durante seu desenvolvimento tem consumido os recursos que citei antes.
Então minha pergunta é a quantidade de recursos existentes em um planeta é suficiente para que uma civilização evolua ao ponto de ser capaz de extrair energia de outras fontes fora do planeta, por exemplo? e assim, ser capaz de explorar outros mundos? Alguém já se fez esta pergunta e/ou analisou o tema sob este prisma?
Adriano, falo brevemente sobre isso no livro, explorando os tipos de civilização de Kardashev, marcados justamente pelo consumo de energia. Ele divide as civilizações entre tipos I, II e III. As primeiras usariam uma quantidade equivalente à energia que incide em seu planeta, vinda de sua estrela. Tipo II usaria uma quantidade equivalente à energia da estrela-mãe. E tipo III usaria a energia disponível numa galáxia inteira. Os humanos no momento estão no tipo 0,8, mais ou menos. rs
Salvador, comente, por favor, a respeito do filme Interstellar! É possível?
Escrevi pro UOL alguma coisa sobre a ciência do filme. Deve sair em alguns dias. 😉