‘Coração’ de Plutão revela a saga do planeta anão
O famoso “coração” de Plutão, a mais evidente das formações visíveis nas imagens da sonda New Horizons, está dando o que falar. Um par de novos estudos revelam lances do passado e do presente do mais célebre dos planetas anões — inclusive com a apresentação de evidências de que um oceano de água líquida sob a gélida superfície congelada ainda possa existir por lá até hoje.
Batizada de Sputnik Planitia pelos cientistas da missão — que, por sinal, terminou apenas duas semanas atrás o “download” de todos os dados colhidos durante o rápido sobrevoo de Plutão, em 14 de julho de 2015 –, a região esquerda (e mais clara) do “coração” consiste numa camada extensa de deposição de nitrogênio sólido.
Aqui na Terra, com nosso clima ameno, o nitrogênio só pode existir como gás. Mas lá em Plutão, sob o frio intenso de -230 graus Celsius dos cafundós do Sistema Solar, a história é outra. Lá o nitrogênio atmosférico pode se solidificar e se depositar sobre a superfície. Neve plutoniana.
Agora, por que esse nitrogênio todo foi se juntar ali? É exatamente isso o que aconteceria se a região tivesse sido vitimada por um impacto de um meteorito gigante no passado remoto. A ocorrência não seria totalmente inesperada. Eventos como esse são comuns, sobretudo nas fases iniciais de formação dos sistemas planetários, e explicam tanto a formação da Lua, ao redor da Terra, quanto a de Caronte, o maior dos satélites naturais plutonianos.
Só que essa pancada aí não gerou uma nova lua, até onde sabemos. Apenas escavou uma bacia enorme em Plutão, com cerca de 1.000 km de largura. Era o lugar ideal para que o nitrogênio que estivesse sendo evaporado nas regiões polares — que, no caso de Plutão, ficam voltadas para o Sol — pudesse se solidificar e acumular como neve ali.
Esse processo de acúmulo de neve foi lento, gradual, e muito provavelmente ainda está em andamento — a maior revelação feita pela New Horizons é que Plutão é um mundo ativo, com ciclos e processos geológicos complexos.
Agora, você pode imaginar que ir juntando nitrogênio durante muito tempo foi aumentando a quantidade de massa presente naquela parte específica do planeta anão. E estamos falando de uma região bem grande (1.000 km) num planeta anão (com 2.300 km de diâmetro). Isso quer dizer, na prática, que Plutão engordou na região da Sputnik Planitia!
Esse processo de “gordura localizada”, por sua vez, ajuda a explicar outra característica da Sputnik Planitia — ela está diametralmente oposta a Caronte, a maior das luas.
Mas ela não começou ali. De acordo com os modelos, Plutão literalmente “tombou” com o passar do tempo para atingir esse equilíbrio.
Hoje, o planeta anão e a maior de suas luas estão no que se convencionou chamar de “trava gravitacional”. A mesma face de Plutão fica sempre voltada para a mesma face de Caronte. Mas agora temos pistas de que essa acomodação pelo efeito de maré ainda sofre ajustes por conta dessa constante transferência de massa, na forma de neve de nitrogênio, no planeta anão.
Ao que tudo indica, nem sempre a face oposta a Caronte era onde estava a Sputnik Planitia. De acordo com uma modelagem publicada na última edição da “Nature”, Plutão foi gradualmente mudando seu eixo de rotação para que isso acontecesse.
E, segundo James Keane, da Universidade do Arizona em Tucson, e seus colegas, o processo ainda não acabou: o eixo de rotação ainda deve se deslocar um pouco mais nos próximos milhões de anos, conforme mais nitrogênio se acumular na região do “coração” plutoniano (que, a despeito do aumento gradual de massa, ainda está cerca de 3,5 km afundado com relação a seus arredores na superfície).
O OCEANO
Keane aponta que as coisas se desenrolariam conforme seu modelo apenas se houvesse um oceano de água líquida no interior de Plutão, que foi se solidificando com o passar do tempo. Seu estudo indica a presença de fissuras no solo plutoniano que seriam indicativas desse congelamento interno e gradual.
Contudo, outro estudo, publicado lado a lado na mesma edição da “Nature”, parece sugerir que o oceano ainda deve estar lá.
Francis Nimmo, da Universidade da Califórnia em Santa Cruz, e seus colegas chegaram, de forma independente, às mesmas conclusões de Keane no que diz respeito à formação da Sputnik Planitia e a mudança de rotação de Plutão ao longo do tempo. Mas, com um detalhe adicional: na modelagem deles, o oceano ainda estaria lá — não teria congelado totalmente ainda, mesmo depois de 4,6 bilhões de anos de resfriamento interno.
Eles alegam que, para o modelo funcionar com um oceano completamente congelado, a Sputnik teria de ter acumulado uma camada de 40 km de neve de nitrogênio — quantidade que, segundo os pesquisadores, é irrealista.
Estima-se que a quantidade real esteja em torno de 3 a 10 km de espessura — o que, por si só, não chega a ser massa suficiente para fazer a girada no eixo de rotação. Mas, então, de onde estaria vindo a massa que falta?
A equipe de Nimmo mostra que o impacto formador da Sputnik naturalmente teria arrancado grandes quantidades de gelo de água superficial e, com isso, levado a um soerguimento da divisão entre gelo e água naquela parte do planeta anão. Água é mais densa que gelo, o que equivale a dizer que, para volumes iguais, água tem mais massa. O soerguimento, trazendo o oceano interno para mais perto da superfície naquela região, explicaria o aumento de massa ali naquele ponto, capaz de fazer o planeta anão “tombar” em seu eixo com o passar de milhões de anos.
RESUMINDO
Como se pode ver, não é fácil deduzir a história geológica de um planeta anão pelas medições furiosas feitas num único sobrevoo. Aliás, é notável que grupos independentes de cientistas possam chegar a conclusões similares — sinal de que, a essa altura, já temos conhecimento suficiente para compreender muitos processos planetários, mesmo com uma única “passada d’olhos”.
A essa altura, é seguro afirmar que:
– A região da Sputnik Planitia, apesar da baixa altitude, representa uma região com mais massa em Plutão, que continua a evoluir e crescer conforme a neve de nitrogênio segue se acumulando em sua superfície.
– Plutão “tombou”, graças ao efeito de maré, para que a Sputnik Planitia — provavelmente produzida por um impacto violento no passado do planeta anão — ficasse no lado oposto ao da lua Caronte.
– É quase certo que Plutão teve um oceano de água líquida sob a superfície no passado, e há algumas dicas de que ao menos parte desse oceano possa não ter ainda se congelado e ainda estar lá até hoje.
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Ola Salvador td bem?
Acopanho suas midias ha algum tempo e as ultimas descobertas planetarias qse sempre sugere que ha oceanos de agua liquida em planetas e luas mas nunca a certeza, como teremos certeza se existe ou não agua? Teremos que mandar escavadeira capaz de perfurar dezenas de quilometros de gelo?
Obrigado
Em alguns lugares já temos certeza. Em Encélado e Europa, a água jorra para fora, então sabemos que está lá. Em Ganimedes também, porque os efeitos magnéticos não permitem outra conclusão. E sabemos também que há água corrente, embora rara e fugidia, em Marte até hoje. Tudo isso é fato. Sabemos. 😉
Ops! Mesmo problema de habilitação do Youtube, Salvador! Vídeo inabilitado para ser visto em outras páginas!
Que joça, cara! Mudei lá!
Não… o vídeo continua inabilitado (24/11, quinta-feira, 18:15). 2×0 pro Youtube 😛
Se inscreve lá no canal do YouTube e faz um Mensageiro Sideral feliz! 🙂
Salvador, esse acúmulo de massa não teria como consequência o “tombo” dessa região para mais próximo de Caronte ao invés de ter ido pra mais longe?
Uma coisa que nunca consegui entender, no efeito de maré existe elevação da Terra tanto na parte mais próxima da Lua ( aí tudo bem ) como na outra parte oposta, talvez isso tenha algo a ver com o que aconteceu lá em Plutão
abs
É isso. A força de maré é exercida sobre o eixo de alinhamento dos dois astros, resultado da soma do vetor força gravitacional do satélite e do vetor força gravitacional exercido pelo próprio objeto central em cada ponto de sua superfície.
Será que entendi bem? Existe água no subsolo pois ela explicaria, pelo menos em parte o bamboleio. Será então que não podem existir “frestas” por onde essa água sai?
Não, ela não explicaria o bamboleio, ela explicaria o excesso de massa em Sputnik Planum, que por sua vez explicaria o “tombo”. Não há frestas por onde sai a água. Se houver mesmo água, ela está a muitos km de profundidade, completamente vedada.
Obrigado Salvador.
Quando me referi ao “bamboleio”, era do tombo que queria falar. Na animação, o eixo que une os centros de gravidade descreve um “L” em Plutão, então considerei mais um bamboleio que um tombo.
Achei muito legal a ilustração do James Keane.
Também achei. Fiquei surpreso quando vi que o desenho era creditado a ele! 🙂
Olá Salvador,
Sou economista, mas acompanho seu blog a tempos para suprir minhas curiosidades sobre o cosmos. Como sou leigo gostaria de te perguntar uma dúvida que tive. O movimento de translação depende do de rotação e vice versa? Há algum tipo de atrito no espaço? A matéria escura poderia gerar atrito?
Abraço e parabéns pelo trabalho
Egberto, não existe dependência entre os movimentos, mas existe conexão. A translação é ditada pela gravidade do astro central, e a gravidade também influencia a rotação. A gravidade está sempre se esforçando para “estabilizar” o sistema, e estabilizar significa manter a órbita o mais perto possível de circular e manter a mesma face dos astros sempre voltadas um para o outro, ou pelo menos em um padrão de ressonância (em que os dois movimentos, translação e rotação, trabalham juntos, harmonicamente). Sobre atrito no espaço, só quando há matéria envolvida. Mas a matéria escura aparentemente não teria essa capacidade, porque ela não interage com a matéria convencional. Ela simplesmente “atravessa” a matéria convencional, que, por sinal, é 99,9% feita de vazio. 😉
Abraço!
O interessante nesses 99,9% de vazio na matéria convencional (a nossa), é que isso ocorre mesmo nos chamados “sólidos”. Então alguém pode perguntar: mas, então, porque minha mão não atravessa a mesa? A resposta: as forças eletromagnéticas que unem as moléculas de nossas mãos e que unem as moléculas da mesa não permitem essa penetração.
Alguma Notícia Das Sondas Robóticas ” VOYAGER 1 & VOYAGER 2 ? Publique ! ! !
Nada de novo com elas! 🙂
Salve, Salvador!
Não sei qual o critério a Folha usa para colocar chamadas na home, mas nas últimas semanas você tem aparecido com muita frequência.
É no mínimo reconhecimento pelo seu trabalho. Parabéns!
A coisa funciona em ondas. Tem vezes que se esquecem de mim… 😉
Obra Da Genialidade E Sabedoria Da Consciência Cósmica. Isto é, ponto.
Não há “consciência cósmica”, apenas propriedades da matéria e energia.
Apenas um escombro espacial, menor que algumas luas do sistema solar e com temperaturas refrescantes de – 230 – 240C., .. hehe!
Como diria mr. Spock:: “Fascinante!”
Quer dizer que o coração de Plutão foi flechado por um asteroide? rsrs
Que romântico, se até os astros sofrem… o que dirá de nós humanos!
Não seria possível o oceano ser de nitrogênio líquido e que uma parte dele se solidificou ao ser exposta após o impacto do meteorito?
Haveria uma forte e rápida perda de boa parte desse oceano ao espaço, gerando uma brusca contração da crosta, além disso, a abertura geraria um processo de vasão que acumularia gelo de hidrogênio na abertura, e hidrogênio não possui a mesma propriedade da água sobre perda de densidade ao passar pro sólido. Ou possui?
Abraços!
Não, não há um oceano de nitrogênio líquido, até onde se sabe. E hidrogênio não tem a mesma propriedade da água em termos de densidade e fase. Abraço!
Há grandes montanhas de gelo de água (duras como granito) em Plutão. (Vide posts anteriores do Mensageiro Sideral sobre o a missão New Horizons.)