Grupo desenvolve tecnologia para mapear superfície de planetas fora do Sistema Solar

Salvador Nogueira

Os últimos 20 anos viram a descoberta de milhares de planetas espalhados pela galáxia, com uma variedade tal que faz o Sistema Solar parecer careta. Agora, um grupo internacional de astrônomos, com participação brasileira, planeja a tecnologia que permitirá estudar a fundo esses mundos.

“A maioria dos grandes telescópios é de uso geral. Nós estamos pensando em construir um que seja dedicado ao estudo de exoplanetas”, explica Marcelo Emilio, pesquisador da Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG), no Paraná, e participante do projeto liderado pela Fundação Planets (acrônimo “esperto” para Luz Polarizada da Atmosfera de Sistemas Extraterrestres Próximos, em inglês).

O primeiro passo do grupo é desenvolver a tecnologia necessária para observar diretamente a luz vinda dos exoplanetas — uma tarefa nada fácil.

Até hoje, praticamente todos os mundos conhecidos fora do Sistema Solar, fora uma ou outra exceção, foram descobertos por técnicas indiretas: mede-se o bamboleio da estrela causado pelo puxão gravitacional de planetas ao seu redor, ou a redução de brilho estelar quando um planeta passa à frente dela, mas o planeta em si não é observado.

De uns tempos para cá, alguns instrumentos — como o Sphere, instalado no Very Large Telescope, e o GPI, acoplado ao Telescópio Gemini Sul, ambos no Chile — foram desenvolvidos para observação direta.

Contudo, mesmo eles estão limitados a detectar apenas planetas mais jovens (que são mais quentes e emitem mais luz infravermelha, faixa do espectro eletromagnético em que a diferença abismal de brilho entre estrelas e planetas diminui um pouco) e que estejam bastante afastados da estrela — à moda dos planetas gigantes mais remotos do nosso Sistema Solar.

Mesmo usando dois dos maiores telescópios de solo disponíveis hoje, não há possibilidade de que um desses instrumentos possa captar um planeta do tamanho da Terra a uma distância de sua estrela que seja comparável à que nosso mundo guarda do Sol.

A Fundação Planets quer mudar esse jogo, demonstrando um novo modelo de telescópio — não necessariamente maior, mas melhor para a tarefa.

DESAFIO DUPLO
“O telescópio capaz de fazer imagens diretas de exoplanetas precisa de duas coisas: ser grande o suficiente para colher luz espalhada pelo exoplaneta e ter um design que impede o brilho muito maior da estrela de obscurecer o exoplaneta”, explica Jeff Kuhn, pesquisador da Universidade do Havaí (EUA) e idealizador do projeto.

“Até certo ponto você pode tentar compensar o segundo ponto com uma abertura maior, mas nossa crença é de que o mundo precisa de um telescópio que atenda aos dois pontos, dedicado a esses problemas.”

Para demonstrar como fazer isso, o grupo já está construindo o telescópio Planets, um protótipo que deve ficar pronto até o fim de 2019, a um custo de US$ 4 milhões.

Além de envolver a Universidade do Havaí e a Estadual de Ponta Grossa, o projeto também tem apoio da Universidade Tohoku, no Japão, do Instituto Kiepenheuer, na Alemanha, e da Universidade Nacional Autônoma do México.

Em termos de tamanho, o telescópio Planets não impressiona; seu espelho primário tem apenas 1,85 m. Comparado, por exemplo, ao VLT e ao Gemini, com 8 m, ele é nanico. Mas tem uma característica especial: ele foi construído fora do eixo.

Normalmente, telescópios refletores são construídos de forma que o espelho secundário, responsável por levar a luz colhida pelo primário até os instrumentos, fica exatamente na direção da entrada dos raios de luz.

“Por causa disso, a aranha do telescópio [a estrutura que suporta o espelho secundário] fica no caminho e causa um espalhamento maior da luz das estrelas.”

O resultado é que ela “vaza” para muito além da posição pontual da estrela na imagem, ofuscando planetas ao redor. (É esse fenômeno que faz com que estrelas mais próximas apareçam com aquelas pontas agudas, mesmo em imagens do Telescópio Espacial Hubble, que também tem uma montagem tradicional, com o secundário no mesmo eixo dos raios de luz que adentram o primário.)

Fora do eixo, o Planets pretende evitar esse problema, além de testar novas tecnologias para a construção do espelho que devem baratear seu custo.

Combinando essa configuração fora do eixo com um coronógrafo (dispositivo que bloqueia a luz de uma estrela específica), espera-se que, em termos de imagear exoplanetas, ele possa ser competitivo com o VLT e o Gemini, mesmo tendo um espelho primário com um quarto do tamanho.

SÓ O COMEÇO
Contudo, o mais importante é que ele é o primeiro passo num caminho muito mais ambicioso.

Caso o Planets se mostre economicamente e cientificamente recompensador, ele é apenas o degrau de entrada para o desenvolvimento de sistemas capazes de detectar sinais de vida em exoplanetas e até mesmo fotografar suas superfícies, produzindo “mapas-múndis” rudimentares.

O próximo passo nessa escada seria o ELF, sigla para ExoLife Finder, ou Buscador de ExoVida. Ele seria composto por um conjunto circular de 16 espelhos de 5 metros cada um.

Todos esses espelhos teriam uma montagem fora do eixo, e a ideia é combinar o sinal individual de cada um deles numa única imagem, por uma técnica conhecida como interferometria.

Seria equivalente a ter um único espelho gigante de 40 metros, maior do que os telescópios de próxima geração já em construção para a década de 2020.

Concepção artística do ELF (Crédito: Planets Foundation)

Com seu foco dedicado em pesquisa de exoplanetas, ele poderia ser usado por meses a fio para observar o mesmo exoplaneta, acompanhando sua órbita ao redor de sua estrela e capturando sinais luminosos em suas diferentes fases, entre “cheio” e “novo” (pense nas fases da Lua, aplicadas a exoplanetas).

Esses dados, colhidos por meses a fio, seriam integrados por meio de um algoritmo para que se possa extrapolar mapas de sua superfície. Seria possível com o ELF, por exemplo, obter uma visão global da superfície de Proxima b, o mundo terrestre potencialmente habitável que orbita ao redor de Proxima Centauri, a estrela mais próxima do Sol, a 4,2 anos-luz.

Planetas muito mais distantes, contudo, permaneceriam fora do alcance para mapeamento. Mas a Fundação Planets tem um terceiro degrau em sua escada: o Colossus.

Ele teria nada menos que 58 espelhos de 8 metros, todos fora do eixo, com uma imagem equivalente à de um único espelho de 74 m de diâmetro.

Esse projeto, se chegar a ser realizado, ainda está várias décadas no futuro. Mas o futuro já começa agora, com a fase final de construção do pequenino Planets.

Concepção artística do Colossus (Crédito: Planets Foundation)

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Comentários

  1. Caro Salvador,

    Obrigado pelo artigo. Muito legal, este telescópio, ideia engenhosa. Mal posso esperar para ver os resultados!

    Só uma coisinha: acho que seria mais correto dizer que o espelho primário do Planets é cerca 1/16 do tamanho do espelho do VLT, porque o que importa nesses casos é a área, não?

    1. Sim, você está correto. Mas fiz a comparação do diâmetro porque o diâmetro é a unidade comumente mencionada pelos astrônomos. Mas, sim, um espelho com diâmetro quatro vezes maior tem 16 vezes mais área. 😉

  2. Daria para examinar a composição química das atmosferas desses planetas com esse telescópio também?
    James Webb será lançado esse ano, não?

    1. Sim, daria — e de forma direta, ou seja, sem precisar de trânsito, como o JW vai precisar no sistema Trappist-1.

  3. Gostei de ver a participação brasileira nesse projeto! Aliás, os astrônomos e pesquisadores brasileiros estão de parabéns. Sempre presente em grandes projetos científicos.
    A ciência brasileira sofre com a falta de verba, em compensação tem grandes cérebros produtivos.
    Espero ver o dia que nossos governantes percebam que todos os países que deram grandes saltos tiveram como base a educação e a ciência. Vontade de quem educa e pesquisa não falta, falta uma política que leve o país a usufruir dos avanços que podem ser obtidos através desses alicerces.

  4. Salvador, o projeto, de certo modo, é surpreendente. Não pela proposta em si, mas pela simplicidade. Observar planetas diretamente era só um problema de engenharia ótica, então? Como todos esses anos não se percebeu isso?

    A propósito, aquele Yuri Milner poderia investir nesse projeto, caso seja viável. Muito mais eficaz que ficar ouvindo ondas de rádio por aí!

    1. Não é o caso de simplificar. Muitas coisas precisaram se encontrar para permitir isso. Observar planetas diretamente continua a ser um desafio formidável. Você precisa de óptica adaptativa, uma engenharia esperta e telescópios gigantes. Esta é só a prova de princípio. Mas não se iluda. Tanto o ELF quanto o Colossus são projetos gigantescos, que custarão bilhões de dólares. O Planets é modesto, justamente por ser prova de princípio. Ele vai ver gigantes gasosos jovens e olhe lá. A gente fala em 16 espelhos de 5 metros agindo em conjunto (ELF) como se fosse mamão com açúcar. Vai muito P&D em cima disso ainda.

  5. uma ideia maluca, mas que pode fazer sentido daqui a alguns anos: tirar completamente a aranha, fazendo o espelho secundário levitar sobre o primário.

    1. É, bem maluca. Imagina o custo de levitação magnética… a ideia dos caras — jogar fora do eixo — é melhor. Para todos os efeitos, é como se estivesse levitando. Nada se interpõe entre a luz e o espelho primário.

  6. Salvador,

    É uma ideia totalmente nova essa do espelho fora de centro, ou já foi testada em telescópicos menores, mostrando sua eficácia (além de possíveis efeitos colaterais não previstos)?

    Att,
    Cláudio

    1. Eles testaram em 2010 com um segmento de um telescópio, colocando-o fora do eixo. Agora estão construindo este, de 1,85 m, e outro, de 1,6 m, de outro grupo, para observação solar. Serão os primeiros. Então, já houve prova de princípio. Mas uma avaliação concreta e completa da melhora do desempenho só veremos com o Planets. E lembrando que essa é só uma das novas texnologias do projeto. Estão testando também uma técnica nova de polimento de espelho que pode tornar a fabricação de vários espelhos iguais bem mais barata, e a estrutura bem mais leve.

  7. Olá Salvador!
    Como acontecem essas parcerias, como da que participou a UEPG? Existe uma proposta pública para participação e aí quem quer entra com dinheiro? É uma seleção?
    Qual vai ser a cota de utilização deste telescópio por brasileiros?
    Obrigado.

    1. O Marcelo Emilio, da UEPG, trabalhou com o Jeff Kuhn no passado, e isso que aproximou os grupos. Não sei os termos exatos da cooperação, ela acabou de ser assinada.

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