Urano tem cheiro de ovo podre, e isto não é humor britânico
Urano, o planeta mais esculachado em língua inglesa no Sistema Solar, tem uma alta atmosfera rica em sulfeto de hidrogênio, o composto baseado em enxofre conhecido por muitos políticos brasileiros pelo odor característico dos ovos podres. É isso aí. O topo das nuvens de Urano cheira ovo podre.
OK, é muita piada pronta, admito. Mas é também uma descoberta importante, que não só ajuda a aprofundar nosso parco entendimento de Urano, um dos dois gigantes gélidos do Sistema Solar, mas sobretudo entender como planetas como ele se formam — aqui e em outras partes do Universo. É o famoso “diga-me o que és, e eu te direi onde formaste”.
O achado, publicado na Nature Astronomy, foi obtido com o Observatório Gemini Norte, no Havaí, e nos permite concluir que Urano é proporcionalmente muito mais rico em enxofre do que em nitrogênio. Por quê? Funciona assim. Os cientistas esperavam que, nas partes mais baixas e densas da atmosfera de Urano, amônia (NH3) e sulfeto de hidrogênio (H2S) se condensassem para formar cristais de NH4SH, também conhecido como hidrossulfeto de amônio. (Valeu, químicos, pela força! O povo deve estar adorando!)
E aí a coisa rola desta maneira — se nitrogênio e enxofre existem em quantidades aproximadamente iguais, teremos quantidades equivalentes de NH3 e H2S e, quando tudo isso se combinar na baixa atmosfera, não haverá sobra alguma. Contudo, se algum dos dois estiver em maior quantidade, depois que tudo estiver acabado, ainda haverá um resto na alta atmosfera. Se a sobra for de nitrogênio, teremos amônia. Se for de enxofre, teremos sulfeto de hidrogênio. Essa era a dúvida cruel dos astrônomos. Acima da camada de nuvens de hidrossulfeto de amônio, haveria nada, amônia ou cheio de ovo podre?
Note que nos gigantes gasosos mais próximo do Sol, o que predomina na alta atmosfera é amônia, indicando sobra de nitrogênio. Seria igual nos gigantes gélidos?
Com medidas obtidas do longínquo Urano pelo NIFS, espectrômetro de infravermelho do Gemini Norte, o grupo liderado por Patrick Irwin, da Universidade de Oxford, no Reino Unido, finalmente fez uma determinação direta: o que resta na alta atmosfera de Urano, a uma pressão de cerca de 1,2 a 3 atmosferas, é H2S.
E o Quico? Bem, isso significa que o inventário de material disponível para a formação de Urano — e presumivelmente Netuno também, já que ambos são bem parecidos e nasceram nos cafundós do Sistema Solar — devia conter um desequilíbrio grande entre enxofre e nitrogênio, com bem menos do segundo — talvez um décimo — do que do primeiro.
“A abundância relativamente baixa de NH3 em Urano (e Netuno) deve estar relacionada à composição e temperatura no local do disco protoplanetário na época em que o planeta se formou”, diz Imke de Pater, pesquisador da Universidade da Califórnia em Berkeley que não participou do estudo, mas publicou um comentário sobre ele na Nature Astronomy.
“Num disco assim, o nitrogênio existia na forma de nitrogênio molecular (N2) e NH3, talvez numa taxa 10 para 1. (…) O enriquecimento em espécies voláteis (como N2 e H2S) depende de quais moléculas são aprisionadas no gelo de água e subsequentemente acretadas no planeta. Se o gelo de água no disco protoplanetário estava em forma cristalina (esperada quando ele se condensa a temperaturas de aproximadamente 150 K), moléculas poderiam ser aprisionadas nos cristais de gelo de água como clatratos. Esse processo não é muito eficiente em prender N2 e pode portanto explicar enriquecimentos seletivos.”
Repetindo em português agora: na região em que Urano e Netuno se formaram, imagina-se que, a cada 11 átomos de nitrogênio, 10 estavam em moléculas de N2 e 1 em NH3. Para essas moléculas irem parar num planeta em formação, em vez de simplesmente serem dissipadas pela radiação do Sol nascente, elas precisavam ser capturadas por cristais de gelo de água. Só que esse processo era muito melhor com NH3 do que com N2, o que ajuda a explicar porque Urano e Netuno acabaram com muito menos nitrogênio.
É divertido ver como as peças do quebra-cabeça se encaixam e como uma observação que parece não ser mais que uma curiosidade — tem cheiro de ovo podre na atmosfera de Urano — ajuda a validar modelos que explicam como planetas gigantes gélidos podem se formar nos confins de sistemas planetários.
Claro, considere tudo isso apenas um rascunho de como nasce Urano. Afinal, tanto ele quanto Netuno ainda são planetas mais desconhecidos que conhecidos. Visitados até hoje por uma única espaçonave, a Voyager 2, esses mundos no momento só podem ser observados de muito longe, o que limita um bocado nossa compreensão.
Ainda assim, estudá-los é uma moleza, perto do que se pode fazer com exoplanetas, a anos-luz de distância. Então, Urano e Netuno continuam sendo a nossa melhor aposta para compreendermos de forma mais geral como planetas desse tipo se formam em todo o Universo.
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