A incrível saga de um neutrino solitário

Há 3,7 bilhões de anos, uma torrente de minúsculas partículas de alta energia foi ejetada na direção da Terra, quase à velocidade da luz. Eram neutrinos, alguns dos componentes fundamentais mais discretos do Universo.

Neste momento seu corpo está sendo trespassado por centenas de bilhões dessas partículas, a maior parte emanada do Sol.

Tenha em mente que, a despeito das aparências, todo agregado de matéria — inclusive você — é majoritariamente feito de nada. Cada átomo é mais de 99,999% espaço vazio. Só não atravessamos paredes por aí por conta da repelência mútua que os átomos exercem uns sobre os outros, por meio da força eletromagnética.

Só que os neutrinos, com sua carga elétrica neutra e seu tamanho diminuto, não estão submetidos a essa força. Por isso, eles costumam atravessar nossos corpos sem abalos.

Pergunta honesta: então como sabemos qualquer coisa deles? Ocorre que os neutrinos são uma peça necessária para explicar certos tipos de decaimento radioativo. Esses processos, por sua vez, são produto de uma outra força da natureza, a interação nuclear fraca.

E essa é a chave para detectá-los. Em raras circunstâncias, neutrinos podem realizar interações com a matéria por meio da força nuclear fraca. Ganham assim sua função de mensageiros cósmicos.
Voltemos então à torrente de neutrinos disparada para cá há 3,7 bilhões de anos. A imensa maioria dessas partículas viajou todo esse tempo inabalada, cruzou nosso planeta como se fosse nada e seguiu viagem sem nem levar souvenir.

Mas um desses neutrinos em particular, passando pela Terra em 22 de setembro de 2017, estava no lugar certo e na hora certa, com energia suficientemente alta, para interagir fracamente com um imenso bloco de gelo no pólo Sul, num volume de 1 km cúbico onde está instalado um ousado experimento de detecção de neutrinos conhecido como IceCube.

A interação gerou um sinal de radiação no gelo, que acionou um sistema de alerta automático para toda a comunidade astronômica, indicando de onde no espaço o neutrino tinha vindo. Era uma rara oportunidade para colocar em prática a chamada “astronomia multimensageira”, em que os pesquisadores observam um fenômeno não só pela luz que emite, mas também por alguma outra fonte de informação — no caso em questão, um neutrino solitário.

Observações feitas em todas as frequências de luz, sobretudo as mais energéticas, e publicadas na última edição da revista Science, revelaram que a partícula fugidia havia saído de um blazar conhecido pela sigla TXS 0506+056.

Ninguém vai culpá-lo se você disser que não sabe o que é um blazar. É basicamente um buraco negro supergigante, como os que moram no coração de cada galáxia (incluindo a nossa), mas visto “de cima” (ou “de baixo”), na direção do seu eixo de rotação.

Agora sabemos que esses objetos astrofísicos, além do Sol e das supernovas, podem ser fontes observáveis de neutrinos — o que, é claro, vai nos ajudar a entender toda a física por trás desses peculiares exemplares do zoológico cósmico. Missão cumprida para o fugidio mensageiro solitário.

Esta coluna é publicada às segundas-feiras, na Folha.

Siga o Mensageiro Sideral no Facebook, no Twitter e no YouTube