Escolhido para ser ministro, astronauta tem os pés no chão e olhar no horizonte
O astronauta Marcos Pontes será ministro da Ciência e Tecnologia do governo Bolsonaro. Na opinião do Mensageiro Sideral, a escolha, anunciada pelo presidente eleito via Twitter nesta quarta-feira (31), é boa. Se vai dar certo, claro, são outros 500.
Começando pela primeira parte, por que é boa? Uma combinação de características pessoais e formação específica tornam Pontes um potencial administrador competente da ciência brasileira.
Aliás, a propósito disso, é triste notar que muita gente resuma o primeiro (e até agora lamentavelmente único) astronauta brasileiro aos cerca de dez dias que ele passou no espaço em 2006, a um custo de US$ 10 milhões para o governo (uma pechincha para uma missão desse tipo, diga-se de passagem). Nisso, o pessoal esquece tudo que Pontes teve de fazer antes de chegar lá. Eu, como o conheci em 2000, não esqueço.
Não cabe aqui desfilar a biografia pormenorizada do futuro ministro, mas convém dizer que o processo seletivo de astronauta da Nasa (a agência espacial americana) é extremamente exigente, e ele foi escolhido não só por sua formação como piloto pela Academia da Força Aérea Brasileira, mas por seu currículo acadêmico como engenheiro aeronáutico formado pelo ITA, com mestrado em engenharia de sistemas pela Naval Postgraduate School, em Monterrey, Califórnia. Uma vez incorporado à classe 17 de astronautas, em 1998, seu desempenho ao longo dos sete anos seguintes esteve acima da média de sua turma.
Em razão da época em que treinou, Pontes se tornou proficiente tanto na operação dos ônibus espaciais americanos quanto das naves russas Soyuz, além de treinamento específico para os sistemas da Estação Espacial Internacional.
Contudo, o mais relevante para a atual discussão é que, durante todo esse período, Pontes se mostrou competente também na principal atividade que cabe a qualquer astronauta. Quando não está em voo espacial — que é, obviamente, a imensa maior parte da carreira, seja de quem for — seu trabalho primordial é cuidar de papel. É isso mesmo, astronautas ajudam a gerir o programa espacial.
No Centro Espacial Johnson, em Houston, Texas, quem não está em treinamento para um voo espacial específico recebe tarefas de gerenciamento, e nisso aprende a lidar com a burocracia de projetos altamente complexos: orçamentos, reuniões e decisões técnicas, negociações, documentação, acompanhamento e implementação, do desenho inicial à conclusão.
Em seu período como astronauta ativo da Nasa, Pontes passou boa parte do tempo servindo não só como interface entre a Agência Espacial Brasileira e o programa da Estação Espacial Internacional (osso duro de roer para ele, dada a falta de respaldo que o governo brasileiro dava à iniciativa), mas também como representante da própria Nasa em outras partes do programa. Um dos trabalhos que a agência americana designou a ele foi servir como ponto de contato na cooperação entre americanos e japoneses para o desenvolvimento, a integração e os testes do módulo laboratório japonês Kibo.
Nessa, Pontes ganhou não só uma vivência de burocracia grande (spoiler: ele vai lidar com burocracia em Brasília), como aprendeu muito sobre diversas culturas e experiências internacionais, lidando com projetos de porte bilionário. É, em essência, o que ele terá de fazer agora, como ministro, para o Brasil.
A carreira de astronauta exige uma mente analítica, a capacidade de identificar e solucionar problemas e de “guardar na cabeça” sistemas altamente complexos, além de exigir tomada de decisões cruciais por vezes em fração de segundos. Fossem meros apertadores de botão, como às vezes quem desdenha dos astronautas gosta de retratá-los, não estariam tão frequentemente em posições de destaque nas administrações de seus respectivos países. Neste momento, por exemplo, o astronauta Pedro Duque, com currículo e carreira similares aos de Pontes, é o ministro da Ciência, Inovação e Universidades da Espanha. Charlie Bolden, administrador da Nasa durante toda a presidência de Barack Obama, foi astronauta.
Pontes, por sua vez, é obstinado e tem a habilidade de pensar fora da caixinha, qualidades essenciais para costurar soluções criativas em momentos de aperto orçamentário como o atual. Ele tem os pés no chão e o olhar no horizonte, características fundamentais para construir o futuro da ciência nacional em meio às ruínas que hoje se apresentam.
Agora, óbvio que pode não dar certo. Há certas habilidades que serão exigidas dele na nova função que ainda não foram colocadas à prova. Uma delas é a de dialogar com a própria academia. Não estamos falando de alguém cujas credenciais estejam expostas num currículo Lattes ou que tenha dezenas de trabalhos de alto impacto publicados, para citar duas métricas apreciadas nos círculos universitários. Nesse sentido, será recebido com desconfiança pela comunidade científica, como um “outsider”. Terá de virar esse jogo.
Outro aspecto, talvez ainda mais complicado, é na outra ponta da linha. Trata-se do jogo travado em Brasília, entre os agentes políticos. Quem já conhece os meandros do Congresso e da administração pública brasileira teria em tese mais cancha para conquistar os apoios necessários e obter um orçamento mais robusto para nosso combalido sistema de ciência, tecnologia e inovação. Não é o caso dele.
E neste momento essa dúvida é dupla: não é só se Pontes conseguirá trafegar de forma eficiente pelo sistema político, produzindo as influências necessárias para que ocorra o aporte suficiente de recursos, mas também sobre que tipo de política será travada por lá a partir de 2019, num momento em que as forças parecem se deslocar dos partidos para bancadas difusas com agendas que não só não têm como prioridade o desenvolvimento científico nacional como às vezes contribuem ativamente para sabotá-lo. (Dá para colocar aqui um saco de maldades já em debate, que vão desde o potencial avanço do criacionismo nas aulas de biologia até a iminente conversão da Amazônia numa Sojozônia, sem planos para explorar de forma sustentável todo seu potencial como floresta em pé.)
Isso cria dúvidas sobre o tamanho do sucesso que o astronauta brasileiro poderá ter na Esplanada dos Ministérios. Mas são problemas que podem ser superados se o governo de fato enxergar o setor como estratégico, como disse en passant Jair Bolsonaro, antes de ser eleito. É questão de pagar para ver. No mais, convenhamos: um ônibus espacial tem quase tantas engrenagens quanto a política brasileira.
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