Pandemia enfatiza valor da ciência diante de farsas ideológicas
A essa altura tornou-se inegável – até por quem negou até a semana passada – que o furacão da pandemia não poupa ninguém e fará estragos imensos no Brasil. Lamento informar, mas nada disso era novidade ou de difícil percepção.
Os virologistas e epidemiologistas estão há décadas esperando pela chegada de um patógeno capaz desse estrago. Não por torcida, mas por uma inevitabilidade da evolução – aquele fato científico que os negacionistas chamam de “só uma teoria”.
Houve ensaios, já no século 21: vimos vírus que matavam muito, mas se espalhavam pouco; e os que matavam pouco, mas se espalhavam muito. Este atual, SARS-CoV-2, ainda não é o pior que pode ficar, mas já ameaça colapsar o sistema de saúde global: mata moderadamente e se espalha muito bem.
Também era previsível que a ameaça provavelmente começasse na China ou arredores. Não por alguma teoria da conspiração maluca, mas pelo simples fato de que é onde temos a maior densidade populacional do planeta. O fato de esses surtos preferencialmente começarem lá não é mais misterioso do que a Rússia ter maior incidência de meteoros. É tão somente consequência da realidade.
Era igualmente sabido que uma quarentena, por mais rigorosa que fosse, seria imperfeita, e o gradual espalhamento do vírus pelo mundo era muito mais que uma vaga possibilidade. Após titubeios e erros iniciais (que ninguém nega, inclusive eles), a China fez um bom trabalho em gerar estatísticas relevantes e, ao mesmo tempo, ganhar tempo para o resto de nós. Que um governo que até duas semanas atrás chamava a pandemia de “fantasia”, “histeria da mídia”, se sentisse no direito de criticar a ação chinesa na crise é tão patético quanto quase tudo que nasce das autoridades federais hoje em dia (com todo respeito ao ministro Mandetta, que tem feito todo o possível para ignorar o maestro grogue da orquestra federal e manter o mínimo de harmonia nessa valsa macabra).
Se tudo isso era sabido, por que diabos então parece que o governo foi pego de calças curtas? A resposta está em outra pergunta: tudo isso era sabido por quem? Pelos cientistas, a quem quase ninguém dá ouvidos até que, com o perdão da expressão, a água bate na bunda. Infelizmente, o poder público (aqui e em outras partes do mundo) não tem o hábito de alicerçar suas políticas em fatos científicos. É por isso que perdemos tanto tempo discutindo se campanhas de abstinência sexual fazem ou não sentido, se os dados de desmatamento do Inpe devem ou não servir de baliza para a proteção da floresta ou, Deus me perdoe, se a Terra é redonda ou não.
Vivemos numa época em que as lideranças se permitem abdicar da realidade em nome de construtos ideológicos, e os dados científicos viram “apenas mais uma opinião”. Pois nunca foram, nunca serão. E se os governos (não só o do Brasil, mas do mundo inteiro) ouvissem mais a ciência, de forma sistemática, estaríamos mais bem preparados para a crise.
A realidade da pandemia se impõe de forma tão imperiosa, com o triste empilhamento de corpos, avultamento de contágios e colapso do sistema de saúde, que até mesmo os reis do fake news estão se vendo obrigados – movidos a paneladas – a ceder terreno aos fatos. Mas será que esse é o limite de nossa esperteza? Apenas reconhecer coletivamente a ciência em situações que impõem castigos rápidos e brutais?
Da mesma forma que os especialistas nos alertam há décadas para o risco de pandemias, e jamais minimizaram o risco desta atual, eles também vêm chamando a atenção para o drama global das mudanças climáticas. Os modelos geram consenso maciço, em todas as partes do mundo, os dados são contundentes, e já vimos a temperatura média da Terra subir 1° C entre 1960 e hoje. Não é futurologia ou hipótese. É física bem conhecida, com medições feitas no mundo real.
A única diferença entre a pandemia e a mudança climática é o horizonte de tempo: a primeira é na escala de meses e anos; a segunda ocorre em décadas e séculos. Mas o desfecho das duas, para o ser humano e sua pequena aldeia global, é o mesmo: muitas mortes e prejuízos monstruosos.
Por que continuamos a negar a ciência como instrumento fundamental de políticas públicas? Até quando seremos governados por achismos e ideologias malucas de astrólogos? São reflexões que podemos fazer, enquanto passamos as próximas semanas seguindo a trilha da ciência e nos trancando em casa tanto quanto possível, até a tempestade passar.
Esta coluna é publicada às segundas-feiras, na Folha Corrida.
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