Universo paralelo por ora é só (boa) ficção científica
De repente todo mundo falando que a Nasa descobriu evidências de um universo paralelo em que o tempo anda de trás para a frente. E nem é o Brasil.
Não, gente, a Nasa não fez nada disso. Mas a notícia “balão sobre a Antártida em projeto liderado pela Universidade do Havaí e financiado pela Nasa detecta sinais de partículas desconhecidas, que podem apontar caminhos para a física além do modelo padrão” não tem a mesma graça, né? Ocorre que essa é a verdade. Talvez um pouco frustrante, mas normalmente a verdade é menos espetaculosa que a ficção (dica: use esse critério para avaliar as teorias da conspiração que circulam por aí).
Estamos falando de um achado que vem aos poucos se consolidando. A história começou em março de 2016, com dois eventos detectados sobre o solo da Antártida por um dispositivo aéreo construído com grana da agência espacial americana. É a tal da Anita, a Antena Antártica Impulsiva Transiente, no acrônimo em inglês (essa não canta, nem fala de política com a Gabriela Prioli, mas voa acoplada a um balão). Destinada a detectar raios provenientes do espaço cósmico, ela captou dois sinais que vinham não do céu acima, mas do chão abaixo.
Ninguém estava pensando que a Terra mesmo estaria emitindo esses sinais. Na verdade, o mais fácil era imaginar que as partículas foram emitidas do espaço, atravessaram o planeta inteiro (a bola, não a pizza) e saíram do outro lado, onde foram detectadas pela Anita (a antena, não a cantora).
Como se sabe, todos os corpos físicos são majoritariamente feitos de vazios, de modo que não é improvável que uma partícula minúscula, nas condições certas, atravesse um planeta inteiro e saia na outra ponta. Neutrinos de baixa energia, por exemplo, fazer isso na boa. O problema é que essas detecções em particular envolviam um nível de energia alto demais, incompatível com o que se esperaria de neutrinos capazes de realizar a proeza.
E aí que a coisa começa a ficar interessante. O que poderiam ser esses diabinhos? A primeira hipótese é que fossem, claro, uma leitura equivocada, um falso positivo (algo como um estudo enviesado feito com poucos voluntários na França por um pesquisador controverso envolvendo cloroquina e covid-19). A melhor hipótese científica para explicar algo esquisito, a priori, é sempre esta: deve haver algo errado com o experimento em si. Normalmente é o que essas coisas são. Já vimos exemplos anteriores, como os neutrinos que supostamente andavam mais rápido que a luz na Itália (não andavam, havia uma falha no experimento) ou, para mergulhar mais fundo na divisa entre erro e fraude, nos estudos de fusão nuclear a frio.
Então, cientistas honestos sempre partem do pressuposto de que é mais provável que o experimento deles tenha um defeito, em vez de a natureza realmente estar tentando nos contar uma nova história que contradiz a física estabelecida, testada e retestada. Com as partículas do Anita, não foi diferente. Era preciso caçar mais evidências de que o fenômeno era real, e não uma miragem.
Pois bem. A coisa deu uma requentada em setembro de 2018, quando um grupo de pesquisadores liderados por Derek B. Fox, da Universidade Estadual da Pensilvânia, adicionou um novo e empolgante capítulo a esta novela. Eles encontraram em outra base de dados, a do IceCube (um observatório de neutrinos também instalado na Antártida), outros três eventos similares, de partículas que em vez de atingir os tanques de detecção vindas de cima, vieram de baixo.
Além disso, os pesquisadores mostraram conclusivamente, no artigo submetido ao periódico Physical Review D, que a detecção, levando-se em conta a energia e o ângulo de saída do subproduto do encontro, descartava a possibilidade de que fosse qualquer uma das partículas conhecidas no modelo padrão – o “resumão” de tudo que se conhece hoje sobre os componentes básicos da natureza e suas interações (excluindo-se a gravidade, ainda explicada pela relatividade geral de Einstein).
Baseado na mecânica quântica, o modelo padrão é a teoria mais bem-sucedida da história da física. Ele recebeu sua coroação definitiva com a descoberta do bóson de Higgs, pelo LHC (Large Hadron Collider), em 2013, deixando os cientistas num estado que Rogério Rosenfeld, pesquisador da Unesp, definiu como PHD, Post-Higgs Depression. Isso porque, de um lado, sabe-se que falta coisa no modelo padrão (matéria escura e energia escura não estão lá, para citar dois exemplos clamorosos), e de outro lado não se sabe o que fazer para encontrar as peças que faltam.
Nesse sentido, os eventos detectados pela Anita e pelo IceCube podem ser a tábua de salvação para o futuro pós-Higgs. Com efeito, após uma busca na literatura científica, Derek Fox e seus colegas concluíram que os resultados misteriosos são consistentes com o que se esperaria de algumas teorias baseadas na noção de supersimetria — a ideia de que todas as partículas que conhecemos têm contrapartes supersimétricas, mais pesadas e ao mesmo tempo mais fugidias, que até hoje se evadiram de nossas detecções. No caso em questão, os sinais detectados pelo Anita e pelo IceCube lembravam uma partícula supersimétrica hipotética chamada stau slepton.
Mas falar “cientistas da Nasa encontram evidência de partícula supersimétrica hipotética chamada stau slepton” não vai empolgar muito quem não é do ramo, certo? Então, na época, isso não tomou de assalto as manchetes e as redes sociais.
Agora, como diabos fomos sair disso e chegar à coisa do universo paralelo? O físico Peter Gorham, pesquisador da Universidade do Havaí em Manoa e líder da colaboração Anita, deu uma entrevista à revista de divulgação científica britânica NewScientist (a Superinteressante deles) falando desses trabalhos. E lá ele menciona que a hipótese mais maluca que conseguiram pensar para explicar o sinal seria a da existência de um universo paralelo, “espelho”, nascido junto com o nosso, do mesmo Big Bang, mas onde a seta do tempo aponta para o lado contrário, do futuro para o passado.
Ele não diz que é a única explicação possível. Ele não diz que é a mais provável. E um colega dele, Ibrahim Safa, também envolvido com a pesquisa, deu a deixa do que realmente temos aqui. “Fomos deixados com as possibilidades mais empolgantes ou as mais tediosas”, disse.
No momento, não há sequer artigo científico com a hipótese do universo paralelo. É uma frase de um pesquisador empolgado, no meio de uma entrevista, amplificada por um título espalhafatoso.
Note que os físicos não estão fazendo nada de errado. É o trabalho deles realizar experimentos que levem as teorias atuais a falharem e então encontrar novas explicações e teorias mais abrangentes para explicar esses novos fenômenos. É por esse motivo que eles trabalham em coisas como dimensões extra ultracompactas, curvas temporais fechadas (viagens no tempo, para os íntimos), supercordas, supersimetria, modelos do Universo com matéria, modelos do Universo sem matéria, violações de paridade que expliquem por que nosso Universo é feito de matéria, e não de antimatéria etc. É por meio desse trabalho de suprema criatividade que vamos acabar achando as descrições mais acuradas do estranho mundo em que vivemos. Quem poderia imaginar a priori que tempo e espaço são elásticos, que a velocidade da luz é um limite fundamental, que partículas podem estar em vários lugares ao mesmo tempo? E hoje sabemos que tudo isso é verdade.
Amanhã, talvez descubramos que o Universo é ainda mais esquisito do que pensávamos. Mas podemos afirmar com todas as letras que, neste momento, a Nasa não encontrou evidências de um universo paralelo. O que ela encontrou foram algumas partículas de alta energia capazes de atravessar o planeta e que ninguém sabe o que são. Há muitos candidatos, e a hipótese do universo paralelo é apenas a mais fantástica (e proporcionalmente mais improvável).
Ah, última reclamação: todo mundo aí referenciando Stranger Things com seu “mundo invertido”. Mas aposto que os físicos emprestaram a expressão “universo espelho” de Star Trek, retratado na saga desde 1967. Se vamos ser todos nerds, sejamos nerds-raiz, pô.
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