Meteorologia leva ao adiamento do voo tripulado da SpaceX para a Nasa

O tempo não ajudou na condução do primeiro voo à órbita terrestre a partir dos EUA nos últimos nove anos. Pouco mais de 16 minutos antes do fim da contagem regressiva, logo após o início do abastecimento do foguete, a empresa SpaceX (responsável pelo voo contratado pela Nasa) decidiu suspender o lançamento da cápsula Crew Dragon, por falta de condições meteorológicas no Centro Espacial Kennedy, na Flórida. A próxima janela vem no sábado (30), às 16h22 (de Brasília). Se não rolar, outra oportunidade surge no domingo.

Quando ocorrer, o voo será histórico por duas razões. Não só é o primeiro lançamento espacial tripulado (excluindo-se aí os pequenos “saltos ao espaço”, suborbitais, feitos pelo veículo suborbital VSS Unity, da Virgin Galactic) desde a aposentadoria dos ônibus espaciais da agência espacial americana, em 2011, como também se configura como o primeiro voo orbital com tripulação a ser realizado por uma empresa privada.

A Nasa está nesta missão como contratante/passageira. Ela é parceira, colaboradora e financiadora, mas a operação do voo, bem como a propriedade do veículo lançador Falcon 9 e da cápsula Crew Dragon, é da empresa SpaceX. Os astronautas serão “entregues” à companhia pouco mais de duas horas antes da decolagem e voam como pilotos de teste, na missão designada Demo-2 (a Demo-1 foi em 2019, sem tripulação), rumo à Estação Espacial Internacional (ISS).

Trata-se de uma grande novidade. E, se tudo der certo, o início de uma mudança sem precedentes na exploração espacial. Basta lembrar que, além do contrato com a Nasa, a SpaceX também já tem voos contratados com a iniciativa privada.

A companhia Axiom pretende realizar dois voos tripulados anuais à Estação Espacial Internacional, a partir de 2021. O bilionário japonês Yusaku Maezawa, que pagou uma pequena fortuna para dar uma volta ao redor da Lua num futuro veículo Starship, da SpaceX, deve antes fazer um passeio orbital terrestre. A empresa de turismo espacial Space Adventures também comercializa assentos em futuros voos. E recentemente circulou a notícia de que Tom Cruise estaria em tratativas com SpaceX e Nasa para gravar um filme no espaço.

MAIOR SUCESSO DA NASA NA DÉCADA
É irônico que a mais bem-sucedida empreitada da agência espacial americana nos últimos dez anos tenha sido passar a bola à iniciativa privada. Mas foi o que aconteceu, numa longa gestação.

O primeiro investimento em desenvolvimento de transporte privado de tripulação veio em 2010, durante o governo Obama. O plano do presidente era derrubar o desenvolvimento direto de veículos espaciais pela Nasa e fomentar a concorrência entre empresas para prestar esses serviços à agência.

No bojo dessa iniciativa, a Casa Branca havia proposto o cancelamento sumário do projeto Constellation, criado pelo governo Bush na esteira do acidente com o ônibus espacial Columbia para levar astronautas de volta à Lua. O Congresso americano, contudo, impediu o corte, e tanto a cápsula Orion quanto um foguete de alta capacidade (que só mudou de nome, de Ares V para SLS) continuaram sendo desenvolvidos, sob a gestão da Nasa, tendo como contratantes principais a Lockheed Martin (no caso da Orion) e a Boeing (no caso do SLS).

Era defensável; até então, ninguém tinha clareza que empresas privadas, com contratos de preço fixo, sem a gestão especializada da Nasa, poderiam atingir os padrões de segurança e confiabilidade exigidos para voos tripulados. Na verdade, o grande teste dessa premissa ainda está adiante, começando por este voo.

Mas o fato é que, enquanto Orion e SLS receberam recursos muito mais vistosos (cerca de US$ 37 bilhões e contando), e ainda seguem distantes do primeiro voo tripulado (no mínimo 2022, provavelmente 2023), o programa de tripulação comercial custou menos de US$ 8 bilhões. E o que ele gerou foram não uma, mas duas cápsulas capazes de voo tripulado.

A que vai voar primeiro com tripulação foi a mais barata delas. No fechamento do contrato com a SpaceX, em 2014, a Nasa pagou pelo desenvolvimento da Crew Dragon e por pelo menos um voo tripulado de teste a soma de US$ 2,6 bilhões. Acerto similar foi feito com a Boeing, que construiria sua própria cápsula, CST-100 Starliner, e faria ao menos um voo tripulado de teste, por US$ 4,2 bilhões.

A primeira a chegar à reta de chegada venceria uma corrida simbólica. A bordo da Estação Espacial Internacional, em 2011, foi deixada pela tripulação do ônibus espacial Atlantis uma pequena bandeira americana. Seu destino era voltar à Terra na primeira missão tripulada lançada de solo americano após a aposentadoria dos ônibus espaciais.

Um dos tripulantes da missão do Atlantis (STS-135) foi Doug Hurley, que agora comanda a missão Demo-2 da SpaceX e poderá voltar à ISS para buscar a bandeira que ele mesmo deixou lá, mais de nove anos atrás.

LANÇAMENTO NA PANDEMIA
Embora esteja publicizando ao máximo o voo histórico, a Nasa tem pedido ao público que evite aglomerações próximo ao Centro Espacial Kennedy, na Flórida, de onde partirá o voo. A preocupação é o contágio pelo novo coronavírus.

Os próprios astronautas tiveram de passar por uma quarentena mais longa que o usual antes do voo, mas, em termos médicos, não sofreram escrutínio muito maior. “Fora os testes de coronavírus, não tivemos muitas mudanças de procedimento. Estamos acostumados a sermos extensivamente examinados”, disse Hurley, em videoconferência com a imprensa.

Seguindo a tradição de longa data no voo espacial americano, os astronautas pretendem batizar sua cápsula – mas guardam segredo do nome até a hora do lançamento.

O voo em si segue o roteiro tradicional de lançamentos da SpaceX, envolvendo inclusive algo jamais usado antes em voos tripulados: pela primeira vez, o foguete será abastecido enquanto os astronautas já estão a bordo da cápsula.

A ascensão à órbita, impulsionada pelos dois estágios do foguete Falcon 9, deve demorar cerca de 12 minutos, até que a cápsula Crew Dragon inicie seu voo autônomo. Começa então uma série de manobras e testes do veículo, culminando com a chegada à ISS.

Durante o voo, Doug Hurley, como comandante, pilotará a nave, realizando os testes exigidos a fim de certificá-la para futuras missões. Caso tudo corra bem, espera-se que os astronautas permaneçam dois a três meses na estação. A duração exata ainda é incerta e depende do desempenho dos painéis solares da cápsula com o passar dos meses, conforme ela permanece acoplada à ISS.

A Nasa espera realizar o primeiro voo regular de uma Crew Dragon até o fim deste ano. Já treinam para voar nela os americanos Michael Hopkins, Victor Glover e Shannon Walker, acompanhados pelo japonês Soichi Noguchi.

No segundo voo regular, para 2021, espera-se que um russo, Andrei Borisenko, componha a tripulação.

A Roscosmos, agência espacial russa, naturalmente olha com alguma desconfiança para os novos veículos americanos. Até porque, com sua entrada em operação, a Nasa deixa de ser a galinha dos ovos de ouro de seu programa espacial, contratando a preços exorbitantes assentos para seus astronautas a bordo das cápsulas Soyuz – único meio de acesso à ISS desde a aposentadoria dos ônibus espaciais.

A partir de agora, se tudo correr bem, a Nasa pretende apenas realizar intercâmbio de assentos, com americanos voando em cápsulas russas em troca de russos voando em cápsulas americanas. A troca permite maior segurança e mais redundância no acesso à estação. Mas deixa de ser uma mina de dinheiro para a Rússia.

Quanto à Starliner, da Boeing, ainda levará algum tempo até que possa voar tripulada. O primeiro teste sem tripulação, realizado em dezembro de 2019, falhou em levar a cápsula à Estação Espacial Internacional. A empresa já disse que realizará novo teste sem astronautas, ainda sem data marcada, antes de se propor a realizar um voo tripulado.