A ignorância é a mãe do massacre; Capitão Cloroquina é meramente seu arauto
Fracassamos. Sim, “amos”. Todos nós. Fracasso coletivo e revoltante, ao atingirmos a trágica marca de 100 mil mortos pelo novo coronavírus no Brasil.
O cérebro humano não consegue intuir o significado de números grandes. Para que eles sejam mais que abstrações matemáticas, é preciso traduzir seu significado em coisas mais palpáveis. Se fossem R$ 100 mil, você poderia traduzir em termos de quantos meses poderia se sustentar com o dinheiro. No caso de 100 mil mortos, acho que a imagem mental é a de desastres aéreos. São o ícone da perda repentina, maciça e sem sentido de vidas.
As aeronaves que realizam a ponte aérea entre São Paulo e Rio de Janeiro costumam ter capacidade máxima ao redor de 200 passageiros. Agora imagine viver num mundo em que, nos últimos quatro meses, derrubamos 500 aeronaves. Não, pera. Quinhentos também é um número grande demais para intuir. Tente este: a cada dia, sem falta, caem 3 ou 4 aviões, matando todos a bordo. Todo. Dia. A cada sete horas, mais ou menos, cai um novo avião. E outro. E mais um. Desde o dia 17 de março.
O número vai crescendo, e a tristeza vira resignação. É o mecanismo psicológico que permite que humanos convivam com grandes tragédias. As pessoas sabem que a desgraça mora ao lado, mas não têm escolha senão tocar a vida adiante, torcendo para não serem sorteadas nessa loteria macabra. Exceto que, no caso da pandemia, as pessoas poderiam ter feito alguma coisa. Nós poderíamos ter feito alguma coisa. E falhamos.
Eu sei que fica muito mais confortável colocar tudo na conta do Capitão Cloroquina, né? Afinal, o vírus não teve no mundo melhor garoto-propaganda. Espero que ele ainda tenha de acertar essa dívida com a humanidade em Haia. Mas isso não nos autoriza a confundir o sintoma com a doença, esta de natureza crônica. Nossa falha é educacional.
Eu francamente acho que a esmagadora maioria não domina sequer a constatação científica simples de que 98% a 99,5% dos que contraem o SARS-CoV-2 se curam sozinhos. Para eles, “foi o sistema imune” é uma explicação tão válida quanto “foi a cloroquina”, “foi Deus”, “foi o ozônio no rabo”.
Quatro séculos depois de sua invenção, ainda não universalizamos a compreensão do método científico, e isso inviabiliza que a maior parte da sociedade distinga entre o que a ciência revela (incluindo suas próprias limitações) e “fatos alternativos”.
Essa negligência espiralou fora de controle com a internet e a proliferação das redes sociais digitais, usadas de forma perversa para manipular nossos instintos tribais e vieses de confirmação e para massificar a desinformação numa escala jamais vista antes.
A culpa pelo massacre perpetrado contra a população brasileira nesta pandemia é de Bolsonaro e seus zumbis vidrados. Mas a responsabilidade pelas condições que viabilizaram a eleição de um ogro cruel e ignorante como presidente do Brasil é de todos nós. Combater os sintomas não basta. Precisamos debelar a doença, que se alimenta de privilégio, arrogância e desinformação.
Esta coluna é publicada às segundas-feiras, na Folha Corrida.
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