Usina de energia celular pifada explica problemas de saúde de astronautas
Muitos dos males enfrentados pelos astronautas em voos espaciais de longa duração podem estar ligados a um mau funcionamento das usinas de energia de suas células, as mitocôndrias. É o que sugere um estudo abrangente realizado com dados colhidos a bordo da Estação Espacial Internacional (ISS).
O trabalho é apenas um de 29 artigos científicos apresentados nesta quarta-feira (25), fruto de uma colaboração envolvendo quatro grandes agências espaciais e mais de 200 pesquisadores espalhados pelo mundo. Com eles, vem o maior conjunto de dados de biologia espacial já produzido na história da ciência, em celebração aos 20 anos de ocupação humana ininterrupta da ISS, iniciada em outubro de 2000.
O objetivo é fazer avançar o conhecimento em preparação para missões tripuladas à Lua e a Marte, objetivos declarados de vários programas espaciais.
Os resultados, publicados online em cinco periódicos científicos do grupo Cell Press, se baseiam em experimentos e observações com astronautas, modelos animais, plantas e culturas de células, além de testes complementares feitos em solo. Na rica base de dados disponível para a pesquisa, figura a missão de um ano realizada pelo astronauta americano Scott Kelly a bordo da ISS, conduzida enquanto seu irmão gêmeo Mark Kelly (também astronauta e agora senador eleito pelo estado do Arizona) era monitorado em solo.
A eles se somam informações de monitoramento constante de mais de 50 astronautas, com uma amostra representativa total de cerca de 10% de todos os humanos que já foram ao espaço. Os 29 trabalhos, dos quais 10 ainda passam por revisão por pares, envolveram uma teia internacional de colaboradores, abarcando as agências espaciais Nasa (EUA), Jaxa (Japão), ESA (Europa) e Roscosmos (Rússia).
O trabalho com as mitocôndrias, em particular, saiu no periódico Cell e teve como primeiro autor o pesquisador brasileiro Willian da Silveira, da Queen’s University em Belfast, na Irlanda do Norte. “Foram três anos de análise, a gente começou a fazer esse trabalho no início de 2018, para publicar agora, no fim de 2020”, conta o pesquisador.
“E o que vimos, primeiro analisando diversos tipos de culturas celulares e de tecidos de camundongo, é que várias coisas estavam acontecendo [no espaço]. A gente estava vendo a expressão [ativação] dos genes, marcadores no DNA, epigenética, tivemos acesso a alguns dados de proteínas e dados de como o metabolismo do camundongo, principalmente no músculo, estava se comportando.”
Ao fazer a análise, todas as alterações medidas, induzidas pela combinação de microgravidade e aumento de radiação, apontaram para disfunção mitocondrial. O passo seguinte, feita esse descoberta, foi verificar dados colhidos em exames de sangue e de urina de astronautas, inclusive o do Projeto do Estudo dos Gêmeos da Nasa, onde foi constatado o mesmo fenômeno.
“Analisando dados desses astronautas, vimos que o irmão que ficou no espaço tinha genes de mitocôndria alterados, sendo mais expressados, produzindo bem mais”, disse. “E foi isso que terminou de dar base para nossa hipótese. E acabou que calhou de terminarmos de fazer nossa análise bem no mês que a Estação Espacial Internacional completou 20 anos [habitada].”
O achado pode apontar novas saídas de adaptação para voos de longa duração, sobretudo agora que as agências espaciais ambicionam promover novas missões tripuladas à Lua e, futuramente, a Marte. Da Silveira e seus colegas indicam em seu artigo que talvez intervenções medicamentosas ou nutricionais já usadas em pacientes na Terra para tratar disfunção mitocondrial possam ter efeito benéfico em astronautas, mitigando diversas condições enfrentadas por eles, de perda muscular a problemas na retina, passando por problemas cardíacos, renais e imunológicos.
PREDIÇÕES
Entre os estudos, também há aqueles que ajudam a determinar o nível de resiliência de astronautas a voos espaciais de longa duração.
Um artigo que tem como autor principal Sylvain Costes, do Centro Ames de Pesquisa da Nasa, na Califórnia, indica que uma boa maneira de estimar o impacto de danos causados por radiação seria quantificar a presença de quebras de fita dupla de DNA em células imunes, a partir de uma gotinha de sangue que pode vir de uma espetada no dedo.
Seria um teste simples, capaz de oferecer uma avaliação sobre o quanto um dado astronauta seria mais ou menos resistente aos inevitáveis danos ao DNA causados pela radiação do espaço interplanetário. Também seria fácil produzir medidas similares durante a missão, monitorando o viajante espacial.
Mais uma vez, o resultado tem correlação direta com situações vividas por humanos aqui na Terra. “A gente propôs uma metodologia de monitoramento dos níveis basais de dano no DNA que pode ser feita por coleta de sangue ou picada no dedo, para podermos prever os riscos à saúde associados à exposição à radiação, tanto no contexto de uma missão espacial quanto no de procedimentos de radioterapia com determinados tipos de câncer, como o de próstata”, explica Ivan Paulino de Lima, pesquisador brasileiro no Ames e coautor do trabalho.
Na mesma linha, um dos estudos, liderado por Cristopher Mason e Afshin Beheshti, apontou que sequências específicas de microRNA (versões pequenas da molécula mensageira do sistema genético) são produzidas, tanto em roedores como em humanos, em resposta ao voo espacial. E mais: a inibição da expressão dessas moléculas reduz danos cardiovasculares em tecidos humanos. Essas sequências de microRNA seriam, ao mesmo tempo, um marcador de problemas e um alvo terapêutico para mitigá-los.
DESAFIOS
Apesar dos resultados promissores em identificação e mitigação de problemas ligados ao voo espacial, resta muito trabalho a ser feito. Um artigo exaustivo de revisão também publicado na Cell indica todos os riscos e desconhecidos ainda presentes, sobretudo para missões de longa duração e longe da Terra, onde há exposição plena à radiação cósmica e solar. E a quantidade de itens em que o risco é alto (não só para a saúde dos astronautas mas também para o sucesso da missão) em uma viagem a Marte indica que ainda não estamos prontos para uma tentativa, exceto se a proposta for abraçar os riscos (veja o quadro abaixo).
Nesse sentido, parece cautelar começarmos por estadias mais longas na Lua e ao redor dela, de onde se pode voltar em poucos dias.
O pacote completo de artigos pode ser encontrado em https://www.cell.com/c/the-biology-of-spaceflight/.