Amostra de duas semanas da loucura que virou o Brasil dos 500 mil mortos

Salvador Nogueira

O plano hoje era falar dos buracos negros supermassivos que existem no coração de cada galáxia e como eles agem como maestros, controlando a produção de estrelas em seu entorno. Mas como, diante da marca de 500 mil mortos?

Quando chegamos aos 100 mil, escrevi algo sobre responsabilidade compartilhada, nosso fracasso em comunicar adequadamente a ciência e instigar resposta coletiva responsável. Menos de um ano e 400 mil mortes depois, nada mudou. É desesperador.

Fique apenas com exemplos anedóticos do meu entorno mais imediato – histórias acumuladas em um intervalo de dez dias, coisa assim. Suspeito se tratar da média da situação em que todos estamos envoltos.

Uma parenta cava um emprego novo, ganhando menos do que no antigo, claro. Lá ninguém usa máscara. A pessoa que a treina conta casualmente que o namorado está com Covid, mas ela não pega. Três dias depois, 7 pessoas na empresa testam positivo em exame sorológico. A parenta testa negativo. Chama uma amiga para visitar, sexta-feira passada. No dia seguinte, apresenta sintomas. “Deve ter sido a friagem.” No domingo, teste de antígeno positivo. A filha, que mora com ela, pegou também. O prognóstico das duas é bom. Infelizmente, a corrente de transmissão do vírus segue intacta. Não vai tardar a atingir alguém que entre na fila dos 500 mil. Mas calma que piora.

Ao comunicar a empresa, ela recebe dos patrões um “kit Covid”, junto com uma “receita”, distribuída por Whatsapp. São oito drogas ao todo: hidroxicloroquina, ivermectina, vitamina D, zinco, vitamina C, azitromicina, rivaroxabana e prednisona. E um avisinho no final: faça tomografia do pulmão entre o sétimo e o décimo dia para ver como está. A única coisa sensata.

Aí a parenta conversa com outro médico. Que diz que nada daquilo funciona. Mas conversa também com um grupo de Whatsapp dos contaminados da empresa, que a essa altura já são 14. Lá estão tomando azitromicina e estão melhorando. Ela resolve tomar. (Que o futuro nos perdoe pelas bactérias superresistentes que estamos cultivando agora enquanto tentamos futilmente atacar vírus com antibióticos, sem qualquer critério.)

Enquanto isso, ouvi a história de um amigo de mais idade que teve de sair para trabalhar. Pegou o vírus. Levou para casa, sentindo-se a pior das pessoas: “destruí minha família”, conta quem esteve lá. Piorou, piorou, piorou, foi para o hospital. Intubaram. Extubaram. Intubaram de novo. Parada cardíaca. Morreu. Uma morte sem sentido, uma família sem chão, em meio à nuvem do negacionismo.

Outro parente, semana passada, contou que a namorada testou positivo para Covid. Ele já havia tomado as duas doses da Coronavac. Segue assintomático. A vacina chegou a tempo para ele e teve quem o convencesse a tomá-la. Teve a dupla sorte que muitos não tiveram. E assim seguimos. Nada muda, exceto os “placares”.

Esta coluna é publicada às segundas-feiras, na Folha Corrida.

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