Radiotelescópio Bingo, em construção na Paraíba, buscará sinal dos primeiros sons do Universo
Sabemos que sucesso musical é questão de época. Agora, um grande radiotelescópio em construção no interior da Paraíba foi projetado especificamente para investigar qual era o som da moda nos primeiros tempos do Universo, pouco depois do Big Bang, e com isso ajudar a elucidar dois dos maiores mistérios da ciência moderna: o que são energia escura e matéria escura. O chamado Projeto Bingo teve sua apresentação oficial realizada nesta terça-feira (6), de forma não presencial, pela internet.
A iniciativa internacional liderada pelo Brasil conta com participantes da China, do Reino Unido, da França, da África do Sul e da Alemanha. “Perdemos um tempo considerável em razão da pandemia, mas os instrumentos estão em construção e esperamos entrar na fase de comissionamento do radiotelescópio até o fim de 2022”, disse Elcio Abdalla, coordenador do projeto e pesquisador do Instituto de Física da USP (Universidade de São Paulo).
A iniciativa tem custo estimado entre R$ 15 milhões e 20 milhões, com recursos da Fapesp (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo), do MCTI (Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações), da Finep (Financiadora de Estudos e Projetos) e do governo da Paraíba. Entre as instituições de pesquisa brasileiras mais envolvidas estão a USP, a UFCG (Universidade Federal de Campina Grande) e o Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais).
E o Bingo, claro, segue a tradição dos astrofísicos com acrônimos engraçadinhos: trata-se de uma contração de Baryon Acoustic Oscillations from Integrated Neutral Gas Observations, ou Oscilações Acústicas de Bárions em Observações Integradas de Gás Neutro. Resumindo, o registro dos sinais deixados pelos antigos sons que fluíram pelo cosmos quando ele não passava de um plasma denso, mais de 13 bilhões de anos atrás.
A BALADA DO UNIVERSO
Calma, não se desespere por não estar entendendo direito que papo é esse. Vamos destrinchar esse negócio, começando pelo Big Bang. Normalmente apresentado como uma grande explosão, ele na verdade pode ser melhor visualizado como uma grande diluição por expansão. Imagine que, no começo de tudo, 13,8 bilhões de anos atrás, toda a matéria e energia do Universo estivesse acumulada em um único ponto. Esse ponto então inflou como um balão, e o conteúdo cósmico foi se espalhando e se diluindo. Nesse processo, foi se resfriando. Partículas foram formadas. Mas ainda muito quentes, se deslocavam a altíssimas velocidades. A luz, por sua vez, não conseguia avançar sem logo trombar em alguma partícula. Elétrons não conseguiam ser capturados por prótons e nêutrons, formando núcleos atômicos neutros. A essa maçaroca desorganizada se dá o nome de plasma. O Sol, por exemplo, é feito de plasma — são núcleos atômicos e elétrons quentes demais para existirem em forma combinada estável.
Com as leis físicas conhecidas, os cientistas conseguem descrever de forma bem razoável o que acontecia nesse plasma primordial. Primeiro, ele não era totalmente homogêneo (a física quântica proibia isso), ou seja, era como um angu cheio de caroços. Segundo, as partículas de luz estavam o tempo todo tentando sair (eu as imagino gritando “me deixa passar, me deixa passar!”), enquanto trombavam com partículas de matéria ao redor.
Não ser homogêneo significava que havia lugares com maior densidade de bárions (prótons e nêutrons) que outros. Onde a densidade era maior, a gravidade fazia mais força para dentro, de compressão. Mas os fótons (partículas de luz) seguiam fazendo seu esforço de se desvencilhar, uma força para fora. A combinação dos dois produziu oscilações acústicas. Isso mesmo, ondas de som foram emanadas em meio àquele plasma denso primordial. Oscilações acústicas de bárions.
A expansão prosseguiu, a diluição aumentou, até que, finalmente, a luz conseguiu transitar sem ficar trombando, enquanto átomos puderam se formar, combinando prótons e nêutrons a elétrons de maneira estável (o que os cosmólogos chamam de “época da recombinação”, de forma até meio confusa, já que essas partículas jamais haviam se combinado antes). Isso aconteceu cerca de 380 mil anos após o Big Bang, quando, diz-se poeticamente, o Universo se tornou transparente.
Os primeiros fótons a dar seu grito de liberdade seguem transitando por aí, tendo viajado mais de 13 bilhões de anos e contando. Nós os detectamos na forma de micro-ondas. Como essa radiação vem de todos os lados, fruto da própria expansão do cosmos pós Big Bang, damos a ela o nome de radiação cósmica de fundo em micro-ondas.
E as tais oscilações acústicas, também ainda transitam por aí? Não. Lembre-se: sons, para se propagarem, precisam de matéria. O preço de o Universo se tornar transparente foi também o de ficar mudo. Mas lá atrás, essas ondas induziram alterações na distribuição da matéria naquele plasma primordial, que mais tarde se refletiriam na organização do cosmos em galáxias, grandes conjuntos de estrelas e gás. Observando a distribuição da matéria em nossos arredores cósmicos mais amplos, podemos buscar o padrão das oscilações acústicas ocorridas na fase “opaca” que veio logo após o surgimento do Universo.
Não é uma tarefa fácil: imagine jogar centenas de pedras em um lago e, depois que cada uma das ondas circulares geradas se sobrepôs às outras em um padrão complexo, você tirar uma foto e tentar identificar uma por uma cada uma delas. Agora vá mais longe e imagine que, no Universo, isso estava acontecendo em três dimensões — os círculos do lago viravam bolhas, ocorrendo em diferentes profundidades.
Apesar da dificuldade, já temos algumas evidências bem documentadas desse padrão. As medidas da radiação cósmica de fundo permitem estimar o tamanho que as bolhas de densidade geradas pelas oscilações acústicas tinham quando o Universo se tornou “mudo”, o chamado “horizonte do som”. E, por outro lado, grandes varreduras do céu, como a famosa Sloan Digital Sky Survey (SDSS), permitiram encontrar esses padrões na distribuição de galáxias, indicando que o antigo horizonte do som, no Universo de hoje, após bilhões de anos de expansão, tem um tamanho de cerca de 500 milhões de anos-luz. Essa é a principal medida que o Bingo pretende fazer, mas observando a distribuição de hidrogênio neutro.
O LUGAR CERTO
Os pesquisadores liderados por Elcio Abdalla procuraram por toda a América do Sul, sobretudo Brasil e Uruguai, onde poderiam abrigar o grande radiotelescópio. Acabaram optando pela Serra da Catarina, na zona rural de Aguiar, no sertão da Paraíba. Os critérios de escolha foram a geografia local e o isolamento, que tornam a região a que sofre menor interferência de rádio gerada por atividade humana, dentre todas as visitadas.
O desenho do radiotelescópio é próprio do projeto, com um refletor principal de 40 metros de diâmetro e um secundário de 36 metros, e uma torre com 28 cornetas para receber o sinal refletido do espaço. O sistema é fixo, o que significa que o instrumento não será “apontado” (a exemplo do famoso radiotelescópio de Arecibo, recém-desativado em Porto Rico). Em vez disso, registrará observações do que estiver no céu acima, e a própria rotação terrestre fará o “apontamento”, permitindo que o Bingo registre cerca de um oitavo da esfera celeste em suas observações.
O principal objetivo é fazer medições de ondas de rádio no comprimento de 21 centímetros, que está associado à presença do hidrogênio neutro (com um elétron girando ao redor do núcleo atômico, compensando a carga positiva de seu único próton). Os dados permitirão observar sua distribuição a uma distância de alguns bilhões de anos-luz. A ambição é que o Bingo seja o primeiro instrumento a detectar em rádio os padrões das oscilações acústicas de bárions.
A precisão das medidas, por sua vez, pode fornecer boas pistas a respeito da matéria escura e da energia escura, duas entidades que conhecemos apenas por efeitos indiretos, mas cuja natureza ainda não é compreendida. E o que dá mais agonia: elas respondem por 95% de todo o conteúdo de matéria e energia do Universo. A dita matéria bariônica, que forma todos os objetos diretamente detectáveis, dos átomos às estrelas, responde por apenas 5%.
Sabemos que a matéria escura existe porque ela produz gravidade, embora não interaja com a luz. E claro que sua contribuição gravitacional é parte da receita para as oscilações acústicas ocorridas lá no plasma primordial pós-Big Bang. Medir as oscilações com precisão ajuda a delimitar sua ação e contrastar com hipóteses explicativas.
Já a energia escura é uma força misteriosa que tem feito com que a expansão cósmica se acelere, de uns 5 bilhões de anos para cá. Ninguém sabe o que é, mas, como ela influencia na expansão, também tem impacto no tamanho das bolhas deixadas pelas oscilações acústicas.
Dessa maneira, espera-se que o Bingo contribua para elucidar esses grandes mistérios. Mas não apenas esses. Os pesquisadores também apostam que o radiotelescópio será útil no estudo das chamadas rajadas rápidas de rádio (“fast radio bursts”, em inglês), fenômeno descoberto na década passada que envolve disparos muito rápidos e intensos de energia. Ainda são largamente misteriosos e vêm em vários sabores; alguns parecem se repetir, periodicamente ou não, outros são eventos únicos. Estamos falando de ocorrências cósmicas altamente energéticas, possivelmente conectadas, ao menos em alguns casos, a estrelas de nêutrons com fortíssimos campos magnéticos, mas sua natureza exata ainda não está clara.
Quando Albert Einstein teve sua teoria da relatividade geral confirmada pela observação de um eclipse solar em Sobral, no Ceará, disse à imprensa: “O problema que minha mente formulou foi respondido pelo luminoso céu do Brasil.” A relatividade geral, por sua vez, é a base da cosmologia, de onde agora nascem os mistérios da energia escura e da matéria escura. Em Aguiar, na Paraíba, um século mais tarde, chegou a hora de o “luminoso céu do Brasil” mais uma vez entrar em campo para tentar resolver a parada. Que venha a construção e então os primeiros resultados!
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