Richard Branson é astronauta com asterisco? Uma breve história da linha que delimita a fronteira do espaço
Encerrada a disputa entre Richard Branson e Jeff Bezos sobre quem chegou ao espaço primeiro, começa uma nova fase da discussão: onde fica a fronteira do espaço e quem de fato a ultrapassou.
Esse certamente será o trunfo do voo da Blue Origin com sua cápsula New Shepard, no próximo dia 20. O sistema de Bezos, movido a um foguete de estágio único, foi projetado para ultrapassar a chamada linha de Kármán, estabelecida pela Federação Astronáutica Internacional, na década de 1960, a 100 km de altitude.
Já a VSS Unity, nave da Virgin Galactic (empresa de Branson), foi projetada para voar um pouco mais baixo, rompendo a altitude de 80 km (50 milhas), que é o aceito tanto pela Nasa como pelas Forças Aérea e Espacial dos EUA como a divisa entre a atmosfera e o espaço.
A divisa é arbitrária: não há, de fato, uma fronteira clara entra atmosfera e o vácuo do espaço. O que existe é uma suave transição, conforme uma nave se afasta da Terra, em que o ar vai ficando cada vez mais rarefeito, até que restam pouquíssimas moléculas avulsas em meio a um vácuo quase perfeito. Mas mesmo a uns 400 km de altitude, onde orbita a Estação Espacial Internacional, ainda há algumas moléculas de ar capazes de oferecer resistência e baixar a órbita do complexo (que precisa ser empurrado de volta para cima de tempos em tempos).
Se a 400 km há moléculas de ar, naturalmente elas também são encontradas a 80 ou a 100 km. Apesar disso, é importante ter uma definição clara do que divide o ar do espaço, por razões estritamente legais. Regras internacionais diferentes regem a aeronáutica e a astronáutica. Pegue, por exemplo, a situação do espaço aéreo. Sobrevoar qualquer país pelo ar exige autorização específica do governo local, ao passo que um satélite transitar por sobre um país não requer autorização; o espaço é tratado como “águas internacionais”, para puxar um exemplo marítimo e completar a trinca.
Coube ao engenheiro e físico húngaro americano Theodore von Kármán (1881-1963) destacar a importância dessa definição e fazer cálculos que embasassem a linha divisória arbitrária. E o critério adotado foi razoável: a atmosfera acaba onde o ar é tão rarefeito que é impossível gerar sustentação aerodinâmica apreciável nela. Em suma, é onde as asas do avião perdem a função.
Curiosamente, o cálculo inicial de Kármán estava mais perto da atual definição americana: 84 km. Ainda assim o belo e redondo número de 100 km (que não fica lá muito bonito e redondo em milhas, unidade imperial usada nos EUA: 62,5) foi adotado internacionalmente pela FAI, com apoio então dos americanos e dos soviéticos. Com efeito, a Nasa adotou a linha de Kármán, nos 100 km, como seu próprio padrão até 2005. Mas, como a Força Aérea dos EUA sempre usou as 50 milhas (80 km), houve a decisão de padronizar, para evitar uma situação local muito peculiar: pilotos civis e militares usando o mesmo veículo (no caso, o avião-foguete X-15) podiam ou não ser considerados astronautas, dependendo de quem estivesse respondendo.
É justamente por isso que agora a Blue Origin, de Jeff Bezos, está usando como um dos argumentos em favor de seu veículo o de que todos a voar nele receberão o status de astronautas por qualquer dos critérios existentes, sem levar um asterisco ao lado do nome, para explicar segundo quem eles de fato foram ao espaço.
A exemplo do antigo asterisco para pilotos civis e militares americanos, contudo, esse é um que também tende a cair. Há movimentos e discussões na FAI, desde 2019, para “derrubar” a linha de Kármán para 80 km. Os argumentos vão desde técnicos (o cálculo original de Kármán e o fato de que satélites conseguem sobreviver no espaço por várias órbitas em trajetórias cujo perigeu esteja entre 80 e 90 km) até históricos e culturais (o fato de que um dos países com maior tradição espacial o usa e que há no momento “astronautas com asterisco”). É improvável que a vantagem técnica entre a Blue Origin e a Virgin Galactic se mantenha por um longo tempo. Do ponto de vista da experiência, a diferença é ainda menor – tanto que a empresa de Jeff Bezos usa também outros argumentos, como baixo impacto ambiental, itens de segurança e janelas bem maiores, para justificar a superioridade de seu sistema. O asterisco é só isso mesmo: um asterisco.
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